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A FLOR E O RAIO DE SOL
Após 2 dias de chuvas torrenciais, a manhã surgiu em luminosa explosão no vale exuberante de vida e beleza. Lírios, azaleias agrestes e delicadas margaridas brancas margeantes aos estreitos e sinuosos córregos de águas muito claras a bordar o vale estendido entre as montanhas, misturavam-se à multidão de moitas de capim de um verde quase brilhante estendido aos pendões prenhes de sementes. O ar, agradavelmente seco e limpo, emprestava um tom brilhante aos raios de sol obliquamente projetados ao nascer do dia, agora algo adiantado, mas longe, ainda, de sua metade, um meio de manhã tépido e glorioso na celebração da vida.
— Bom dia, flor, como você se chama?
— Ai, raio de sol, que susto!
— Desculpe, não quis sobressaltá-la. Ao contrário, encantei-me com a sua expressão perdida, com a sua brancura e pureza. Estou verdadeiramente cativado. Você me perdoa?
— Claro, raio de sol. Estou muito feliz por você haver chegado. Estava sentindo uma saudade gostosa e incerta, a rigor uma carinhosa e intuitiva impaciência pela sua vinda.
— Você não me disse o seu nome…
— Margarida.
— Margarida! É um nome bonito, mas não faz justiça à sua beleza, à alva delicadeza de suas pétalas, à alegria que você irradia.
— Obrigada, raio de sol. Quase enrubesço. Você me quer vermelha? É tão delicado e suave. Eu me assustei porque sou uma boba sonhadora; estava pensando na nossa imortalidade.
— Imortalidade, flor?
— Sim, imortalidade. Felizmente, porque o mundo precisa muito de nós para expressar o amor e a paixão, colorir as alegrias, suavizar a morte de entes queridos e aliviar o sentimento de perda.
— É verdade, mas não entendo porque imortalidade.
— Todas as formas de vida existentes na Terra são imortais, raio de sol, através de sua descendência quando se estabelece uma linhagem, sua continuidade e aperfeiçoamento dos seus exemplares pela sucessão e evolução.
— Caramba, flor, como sabe você dessas coisas?
— Geração após geração nós as ouvimos dos humanos nas várias oportunidades nas quais estamos ou estivemos presentes. São coisas que se vão incorporando à memória da nossa espécie, depois ao nosso DNA. Você sabe, raio de sol, o que é DNA?
— Isso eu sei, nós também entendemos a fala dos humanos. Eles falam de muitas coisas, especialmente ao ar livre; quando escavam, fazem pesquisas arqueológicas, eles falam muito desse tal DNA. A gente acaba aprendendo e incorporando essa, como muitas outras coisas em nossa memória, como diz você. Mas tudo isso me entristece.
— Por quê, raio de sol?
— Nós um dia vamos morrer irremediavelmente, nossa fonte vai se apagar. Nós, na realidade, somos projeções do seu estiolar à medida que o seu combustível vai sendo consumido e nós produzidos. Quando o combustível acabar, a casa de nossa ascendência desaparecerá e nós desapareceremos para sempre com ela, não mais seremos úteis para nada.
— Você está enganado.
— Como enganado?
— Quando a casa de sua ascendência esgotar o combustível do seu núcleo ela colapsará, transformando-se em uma anã branca, pequena, mas muito densa e quente, embora de baixa luminosidade, e se porá a irradiar energia até se esgotar completamente e converter-se em uma anã negra.
— Não dá no mesmo?
— Não. Tudo se cria a partir da energia. A vida não se extingue, ela se renova em ciclos. Você sobreviverá, sob outra forma, na forma da energia irradiada pela anã branca, que se transformará na casa de sua descendência e concorrendo para a formação de novos ‘sóis’, novos mundos, novas formas de vida. A partir das estrelas, dos novos ‘sóis’, você voltará a ser projetado. Mas, olha, raio de sol, às vezes você e os seus são muito maus, queimam tudo, as plantas que alimentam, estorricam o solo…
— Você tem razão. Na verdade somos, todos, uma coisa só. Como os humanos, alguns bons, alguns maus, dependendo da hora, época e lugar. Queimamos ali, mas suavizamos acolá. Embora da mesma espécie, temos ‘naturezas’ diferentes, podemos ser abrasadores, mas sabemos também ser suaves.
— Nós também somos como os humanos, raio de sol.
— Também, flor?
— Também. Um dia eu fui uma mulher.
— Não brinca comigo, flor; eu a estou amando muito.
— Eu também o estou amando muito, raio de sol, não estou brincando. Minha linhagem nasceu, começou no túmulo de uma linda mulher sepultada aqui no vale, por isso a minha suavidade e beleza.
— Flor?
— Sim, raio de sol?
— O que faremos do nosso amor?
— Ele será eternizado, raio de sol.
— Como, flor?
— Você me fecundará, eu produzirei sementes que o vento dispersará pelo vale, assegurando a minha sobrevivência para ser novamente fecundada pelos raios de sol que se originarão de você, da energia irradiada pela casa de sua ascendência convertida na casa de sua descendência. Voltaremos a nos encontrar em outros ciclos da vida, em outras existências.
O raio de sol a olhou com ternura. No esplendor da manhã gloriosa em luz ela abriu-se completamente e ele a fecundou. Ficaram juntos por todo o dia. Depois o pôr do sol, o momento do suave escurecer, a paz sobre o vale, um céu de tantas estrelas, tão próximas, que parecia quase se tocarem. Naquela noite mágica, fecundada e feliz, adormecendo, a pequenina flor sonhou sonhos de amor.
© Onair Nunes da Silva