No último post, no trecho em que falo de minha revisita aos mais eminentes filósofos da história e da regra ética básica, grafei escolhos filosóficos. Usemos escólio; a obra de Kant a que me referi está na essência disposta em escólios e corolários. Assim, pois, fica melhor.
E quanto ao sapo, é vaga-lume, não vagalume. Penitencio-me.
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Eu compus temas musicais para marcar dois personagens de O Reencontro, Marie-Anne e Jean-Philipe, além da Propriedade burguesa onde se desenvolveu a maior parte da história. Uma quarta composição marca o final do drama dos dois jovens amantes, este, no singular, termo designativo do protagonista de uma relação de amor, de carinho, sem a conotação pejorativa que, as vezes, lhe é emprestada.
O primeiro é Nane – Uma Canção de Amor para Marie–Anne, o segundo é, simplesmente, Jean–Philipe, background do personagem, o terceiro, Ailliers, tomou o nome da Propriedade, a quarta, Tristesse, é uma quase-litania. Dos quatro, apenas Nane tem versos; as demais são, inteiras, melodia.
E curioso como, através da música, dizemos de modo apropriado aquilo que raramente conseguimos expressar por meio de palavras. É tudo uma questão de tom. Costumo dizer, mesmo, que precisamos encontrar o tom adequado não apenas para significarmos idéias, mas para tudo o mais, atividades sociais, profissionais, diversão, relacionamentos pessoais e íntimos, etc. Em um trecho de Nane eu digo:
(…)
Com emoção, na imensidão Daquele mundo eu te encontrei, querida Te fiz sonhar, te quis me amar Antes dos tempos, muito aquém da vida Me fiz cantar, me quis luar Pra te banhar em noites mal dormidas Me fiz vagar, te quis buscar Por existências, tantas, percorridas
Te reencontrei, meu momento bom, Minha poesia, meu verso, meu tom
(…)
Feliz o homem que reencontrar a mulher de todas as suas existências; essa mulher será o seu tom. Por ela pautando a existência do reencontro, realizarão, juntos, a paz do amor delicado e gentil, o amor dos verdadeiros amantes.
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Noitinha de segunda-feira de carnaval. 2011. Depois de Nane, ainda a música, como compor, compus e componho, melodia e letra juntos; corda e caçamba, têm de nascer siameses para realmente se completarem. E a vantagem – ou desvantagem – de envelhecer são as lembranças, o baú de tarecos sentimentais, boa parte deles feita música. Alguém não as terá? Haverá alguém girando por sua existência sem um baú de lembranças? Se houver, pobre robô.
Faz tempo, muito tempo. Madrugada, amanhecendo a quarta-feira de cinzas. Já em casa, a realidade â espreita, esperando para apresentar a conta:
– Aí, meu príncipe, o sonho acabou, a carruagem virou abóbora, a princesa se foi, e, se você bobear, vira sapo. Ḗ hora de retomar a luta.
Eu na sala, sentado, esparramado, penumbra, só o quebra-luz aceso, sem vontade de me mover.
– Tudo bem, mas posso, pelo menos, cozinhar as minhas lembranças do carnaval?
– Isso mudou de nome? Cozinhar? Já? Bom, é lá com vocể. Ḗ melhor tomar um banho e ir para a cama.
Não fui. Compus. Assim:
Vão pela madrugada, Meu samba, meu tamborim Dizer à minha amada Que não se esqueça de mim
(bis)
O carnaval acabou A quarta em cinzas chegou Vocể se foi, tão só fiquei Sem sua voz cristalina Eu pierrô, vocể colombina, Juro, de saudades eu chorei
Na solidão, tanta mágoa Senti ao vê-la partir Agora, sem vocể, doce ausência, Perdido, não sei aonde ir
Sem samba, sem fantasia, E mesmo sem carnaval Busco encontrá-la algum dia Meu breve instante final
Era o meu tempo de São Paulo, eu mais para paulistano, mas o Rio ainda grudado em minhas lembranças, o papo do fim de noite, ora na esquina, ora naquele bar da rua São José, antigo, bom serviço, já não existe mais, a praia do sábado de manhã, à noite o Beco; aí o corte abrupto, Dutra acima, uma saudade doída, de sufocar. Outra vez compus, a melodia vestindo a letra:
Rio, meu pedaço de céu, meu pedaço de mar. Meu pedaço de sonho que me faz sonhar, Meu pedaço de mundo onde a paz quer repousar Rio tuas manhãs são poemas de luz e de cor São cascatas de azul num dourado esplendor Onde a brisa sussurra canções ao meu amor Rio de Janeiro, Rio de Janeiro…
Oh, meu Rio, quando voltarei? À vida que vivi, aos sonhos que sonhei, Ao teu sol, ao teu céu, teu luar, Onde um Rio de sonhos se encontra com o mar Rio de Janeiro,..
☬☫☬
Não foi naquele bar, mas praticamente o mesmo e antigo grupo de amigos, passado bastante tempo. Pediram-me para contar com música o desencanto de um de nós. Eu contei. Eu cantei.
Me lembro ainda quando nós nos vimos pela primeira vez O céu abriu-se, o mundo fez-se um sonho multicor O seu sorriso derramou-se em luz e eu pressenti o amor Cheguei bem perto da felicidade pela única vez
O mar em tom de azul profundo cantou canções pra mim Emoldurado pela suavidade daquele entardecer E com a maior ternura desse mundo, num marulhar sem fim Testemunhou em doce embalo o nosso amor nascer
Mas logo tempestades vieram sobre nós Tristezas e ansiedade calaram-me a voz O amor foi se acabando, eu sem saber porque Perdi-me esperando você
Perdido, agora, em pensamentos, vejo o pouco que ficou De todo o amor e da comédia que você representou Por tudo o que foi nosso e por tudo o que você me fez Eu choro por você nesta canção pela última vez Pela última vez, pela última vez…
☬☫☬
Chora-se com a música, mas com ela também dizemos aos filhos o quanto os amamos:
Vai longe o tempo dos parquinhos, das gangorras, Do não pules, tu não corras Que senão tu vais cair Das noites em que te afagando a cabecinha Eu te lia historinhas Para te fazer dormir
Das tardes/noites frias Quando as lições fazias E sobre os cadernos tantas vezes tu adormeceste Da praia e da bola Das brigas na Escola Vai longe o tempo e mesmo tu não percebeste Criança tão serena Guiar-te valeu a pena, Hoje és um homem, meu menino, tu cresceste
Meu filho, agora que caminhas teu caminho E as tuas lutas lutarás sozinho Na esteira das batalhas em que me bati Te creia, e estende a tua mão abençoada* Me faça teu irmão, teu camarada, Me deixe amar a todos através de ti.
*Mãos que curam, aliviam dores, são, todas, abençoadas
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Continuemos com O Reencontro.
(…)
Os dias se passaram. Ele continuava com uma enorme sensação de vazio. Certo dia, havendo ido para a praia após o almoço, como sempre fazia, ouviu uma algazarra; alguns colegas da Praia do Sudeste estavam chegando para uma incursão pela chácara da inglesa, como chamavam o lugar de sua louca brincadeira.
– A gente esperava te encontrar aqui; vamos brincar com os cachorros, disse-lhe Fauzi, filho do dono da loja de armarinhos. Vamos logo !
Adriano, de cócoras escrevendo na areia com um graveto, levantou-se e ficou parado, calado, sem aderir à algazarra.
– O que houve, está desanimado? Perguntou-lhe Fauzi, mais velho do que ele cerca de três anos, a quem era muito chegado; eram amigos.
– Não Fauzi, eu não quero mais fazer isso, não!
O amigo olhou-o por um instante, acercou-se e tomou-o pelo braço, afastando-se com ele do grupo.
– Adri, a gente tem notado que desde aquele negócio do barco no mar você está diferente, triste, distante, como se não estivesse ligando pra nada. O que está acontecendo?
Adriano olhou-o nos olhos e disse com um leve menear de cabeça:
– Eu não sei, Fauzi, eu não sei. Ando meio confuso, tentando entender direito o que foi que me aconteceu e não consigo.
– Pucha Adri, o que aconteceu foi que você caiu no mar e o português João Coímbra te salvou; foi incrível. Outro dia eu estava lá na Colônia e ouví ele dizer que até hoje não sabe o que foi fazer no mar naquele dia, domingo, dia de vento sul e chovendo. Seu Varanda perguntou o que deu nele e ele só respondeu que foi mandado, que tinha alguma coisa dizendo pra ele ir pro mar e que ele não teve como não obedecer. Todos olharam pra ele espantados e ele mudou de assunto, desconversou e saiu. Não quis falar sobre a coisa que mandou ele pro mar. Teve gente achando que ele tinha ficado meio doido. O João Grande, aquele negão que te tirou da água e que estava perto disse que ele estava como um zumbi quando foi tirá-lo da cama às quatro e meia da manhã, parecendo que nem ouviu suas reclamações quanto àquela maluqueira. Apenas lhe disse:
Prepara as tuas tralhas, rápido, que eu vou chamar o Leitoa; café a gente toma no barco. Já passei pela padaria e peguei pela porta de trás pão fresco, salame, pó e açúcar.
Pucha, foi incrível, arrematou Fauzi.
(…)
Adriano acenou para o grupo que se afastava tagarelando, indo em seguida para o quintal, onde parou por um momento. Olhando para a trilha que subia para a chácara e levava até o topo do morro por trás da casa decidiu, num ímpeto, seguí-la. Subiu apressado, sem mesmo saber porque, uma vez que aquilo não estava nos seus planos. Não precisou de muito tempo para chegar ao topo, de onde se divisava o mar fronteiriço e uma parte da pequena baía e do casario da Praia de Sta. Helena, descortinando-se também o mar alto para além do pontal e do promontório alcantilado que formavam a boca da barra; acomodou-se num nicho forrado de capim (…). Era começo de dezembro; o mar, refletindo o ceu de final de primavera, tingia-se de um azul intenso, o sol claro e brilhante arrefecido pela brisa que soprava.
Adriano deitou-se de frente para o mar, apoiando a cabeça num espesso tufo de capim; sentiu-se confortável e relaxado como não se sentia há semanas. Os raios de sol, coados por entre as folhas de um arbusto que oscilava suave, enraizado em uma camada de terra no alto de uma das pedras, faziam sobre o seu rosto um jogo de luz e sombra. Pareceu oscilar como oscilavam os galhos do arbusto, sentindo-se introverter, para no momento seguinte experimentar a sensação de algo como um dedo pressionando-lhe entre as sobrancelhas e produzindo um forte calor no lugar tocado. Um brilhante e irregular ponto de luz violeta surgiu-lhe na mente vazia e escura, o couro cabeludo e o rosto entorpeceram, os cabelos pareceram ouriçar. O ponto de luz ampliou-se, irradiando calor para os braços e para o tronco, depois para as pernas, indo até à planta dos pés, entorpercendo-os também. Adriano, parecendo flutuar, sentiu-se como se estivesse sendo tragado para dentro de si próprio – não podia compreender na ocasião; ele penetrava outros níveis de consciência, mergulhando primeiro num escuro corredor que se formava logo após o que lhe pareceu um abrupto abrir de porta, depois, saiu para um amplo espaço em penumbra através do qual se sucediam rostos, objetos, lugares, até avistar um aglomerado, uma cidade, que lhe pareceu familiar.
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