(…)
– Desde sempre, respondeu ela.
– Quando é desde sempre? Insistiu ele.
– Desde sempre é quando ocê num era, nem eu, quando Deus nem tinha ainda feito o mundo, nós era Ele e a gente vivia na graça, só Nele.
Aquela era uma rara forma de manifestação da misteriosa mulher, tão humilde, aparentemente (…) em tais momentos seu corpo empertigava-se e ela traía um porte altivo, um olhar penetrante, cheio de sabedoria.
(…) Os borrões passaram a vultos, depois a pessoas de rostos sorridentes estendendo-lhe os braços, chamando-o. Vicenza retirou a mão, as imagens desapareceram, o torpor se desfez e ele (…)
(…)
Adriano reagiu instantaneamente. (…)
– A maré está levando o barquinho!…
(…)
E tudo aconteceu. O peso da água mais o peso do menino do mesmo lado do caiaque viraram-no, atirando-o no mar de águas muito frias. O choque foi doloroso. (…); estava lúcido, e ele próprio, em meio à sua tragédia, surpreendeu-se pela calma com que aceitou os fatos: Ia morrer.
(…)
De pé, sobre o castelo de proa da baleeira, aparentemente não percebida por mais ninguém, Vicenza sorriu-lhe calorosa numa reverência sublinhada por leve e quase imperceptível inclinar de cabeça. Perdeu os sentidos.
(…)
– O menino precipitou-se pelo corredor, atravessou a cozinha num salto e saiu pela porta de trás em direção ao caminho que levava à praia, deixada livre pela maré baixa, gritando em desespero o nome da velha negra. Correu o que pode na direção da Praia do Sudeste, a chuva, que voltara a cair forte, batendo e doendo-lhe no rosto, tirando-lhe o fôlego. Esgotado ainda pelo longo esforço da tarde no mar, caiu de joelhos junto à grande pedra incrustada no morro, que delimitava daquele lado o pequeno recôncavo. Com um movimento do corpo para trás, sentou-se, cabeça baixa, mãos de dedos entrelaçados em volta dos joelhos, a testa neles apoiada, dizendo, alheado de si, em transe de intenso sofrimento, num murmúrio entrecortado de soluços:
– Vicenza, por que você fez isso comigo? Por que você foi embora outra vez?
E sozinho, sentado na areia fria da praia deserta e escura chorou baixinho, agora abraçando os joelhos nos quais apoiou o queixo, o corpo cansado e tiritante de frio, sob a chuva que caía fustigando-lhe o rosto e lavando-lhe as lágrimas.
– 0 –
A segunda-feira amanheceu escura e fria, mas sem chuva, embora as nuvens pesadas sobre o mar, barra afora. Adriano não se levantou cedo, como de hábito, para ir ao colégio; (…)
(…)
– Mãe…?
– Humm…?
– O que aconteceu comigo?
– Aconteceu o que?
– A senhora sabe…
– Não aconteceu nada, isto é, aconteceu, a Vicenza foi embora.
– E por que ela foi embora?
– Não sei, ninguém sabe.
Fez-se uma pausa.
– Mãe…?
A senhora envolveu-o nos braços, apertou-o, trouxe-o para junto de si.
– Fala filho.
– Ela não vai voltar mais?
– Não, acho que não.
– A senhora brigou com ela?
– Não filho, não houve nada; todos aprendemos a gostar muito dela. E sabíamos o quanto ela era importante para você … chamava a atenção … não apenas o quanto ela era importante para você, mas também o quanto você era importante para ela. Eu, às vezes, até sentia ciúmes, disse rindo. (…)